O bebé ouve bem? O rastreio auditivo, o primeiro teste de audição ao recém-nascido
Marta Gomes é Audiologista e acompanha as Pulguinhas recém-nascidas naquele que é um dos seus primeiros exames médicos, normalmente realizados ainda antes de sair da maternidade. Para compreender melhor o rastreio auditivo, em que consiste e o que permite identificar, falámos um bocadinho sobre este processo. Saiba com o que pode contar.
O que é o rastreio auditivo ao recém-nascido e por que é realizado?
Quando uma Pulguinha vem ao mundo exige uma série de cuidados de saúde para que possa crescer e desenvolver-se de forma saudável. Um dos sentidos essenciais e que logo se manifesta é a audição. Um bebé com poucos dias pode assustar-se na presença de estímulos sonoros novos ou acalmar com outros. Mais tarde, este sentido é fundamental para a aquisição e desenvolvimento da fala, da linguagem oral e na aquisição de competências comunicacionais. Dada a sua importância, a identificação precoce de qualquer alteração no sentido da audição influencia decisivamente o prognóstico do desenvolvimento linguístico, cognitivo e social da criança (Cruz et al. 2007).
O objetivo primordial do rastreio auditivo é a identificação precoce de eventuais hipoacúsias (perdas de audição) nas Pulguinhas acabadas de nascer.
Em Portugal, o Grisi – Grupo de Rastreio e Intervenção da Surdez Infantil, recomenda que todas as crianças com perda de audição sejam identificadas antes dos três meses e que a sua intervenção seja iniciada até aos seis meses. É fundamental que um programa de diagnóstico precoce de audição neonatal funcione adequadamente para que se detetem todos os casos de surdez presentes ao nascer.
Para além disso, a vigilância nos primeiros anos de vida de todas as crianças assume igual importância, pois a perda de audição pode ser adquirida após o nascimento. Segundo a Organização Mundial de Saúde, trinta e dois milhões de pessoas no mundo com 15 anos ou menos apresentam algum grau de perda de audição. É da máxima importância que os profissionais de saúde, mas principalmente a família e os educadores estejam atentos a todos sinais que possam evidenciar perda de audição, para que esta seja detetada o mais precocemente possível, como por exemplo:
- Se a criança não responde ao ser chamada
- Se a criança pede para aumentar o som da televisão (ou rádio) ou se se aproxima muito deste
- Se a criança apresenta dificuldades no processo de alfabetização na escola
- Se a criança pede com frequência para repetir o que foi dito
Quais são os fatores de risco associados à surdez?
A surdez infantil é uma condição que afeta crianças de todo o mundo (Monteiro & Serrano, 2018). Estima-se que em cada 1000 recém-nascidos saudáveis 2 a 4 tenham perda auditiva significativa e permanente. Os números aumentam quando falamos de recém-nascidos de risco, estimando-se entre 20 e 40 casos em cada 1000. A elevada incidência destes números sustenta a importância do Rastreio Auditivo Neonatal Universal.
Existem alguns fatores que aumentam a probabilidade de surgir uma hipoacúsia à nascença, ou na primeira infância. São eles: (Griz, et al, 2010)
- História familiar de deficiência auditiva congénita
- Consanguinidade
- Infecção congénita (sífilis, toxoplasmose, rubéola, citomegalovírus, herpes, HIV)
- Malformações crânio-faciais
- Peso ao nascimento inferior a 1500 g
- Hiperbilirrubinémia
- Medicação ototóxica por mais de 5 dias (aminoglicosídeos ou outros, associados ou não aos diuréticos de ansa)
- Meningite bacteriana
- Índice de Apgar de 0-4 no 1º minuto ou 0-6 no 5º minuto
- Ventilação mecânica por período igual ou superior a 5 dias
- Sinais ou síndromes associadas à deficiência auditiva de condução ou neurossensorial (síndrome de Wardenburg, Alport, entre outras)
Como é feito o rastreio e que resultados se esperam?
Idealmente, o rastreio auditivo deve ser realizado nas primeiras 12h de vida da Pulguinha, antes da alta hospitalar, ou no máximo até 30 dias de vida. É habitualmente efetuado através do exame de Otoemissões Acústicas, que é um exame rápido, não invasivo e indolor. Consiste na colocação de uma sonda no canal auditivo do bebé e no registo da resposta do ouvido interno ao estímulo sonoro emitido pelo equipamento. Se o resultado for "passa", significa que estamos na presença de um normal funcionamento das células ciliadas externas, presentes no ouvido interno do bebé. Se o resultado for "refer", significa que houve a impossibilidade de detetar sons de resposta dessas mesmas células. Nestes casos há que averiguar a causa subjacente ao resultado (p. ex: secreções no ouvido externo ou médio) e deve-se repetir o teste no prazo de 15 dias. Caso o resultado "refer" se mantenha, o bebé deverá ser observado na consulta de otorrinolaringologia para análise médica e eventual realização de outros exames de diagnóstico complementares. É igualmente importante o envolvimento do médico Pediatra e/ou médico de Família, em todo este processo.
Quais são os passos seguintes no caso de haver problemas auditivos?
Quando uma perda auditiva está identificada, deverão ser desencadeados de imediato os meios de diagnóstico e intervenção precoce. Como frisado atrás, até aos três meses de idade da Pulguinha, deverá estar completo o processo de confirmação do diagnóstico da surdez e até aos seis meses o processo de intervenção deverá ter ocorrido (Cruz, et. al, 2007). Diferentes trabalhos ao longo dos anos têm demonstrado que a intervenção reabilitadora adequada e iniciada o mais precocemente possível são o principal fator influenciador de um resultado funcional de sucesso, independentemente do nível social da família e da existência de deficiências associadas (Downs & Yoshinaga-Itano, 1999).
A avaliação e o seguimento de uma criança com perda auditiva deverão ser realizados por uma equipa multidisciplinar que inclua pediatras, otorrinolaringologistas, audiologistas, enfermeiros, terapeutas da fala, psicólogos e outros (Cruz, et al, 2007).
Às crianças com perda auditiva deverão ser disponibilizados todos os meios de ajuda técnica adequados e necessários à sua (re)habilitação, nomeadamente próteses auditivas, implantes cocleares ou outros sistemas de apoio.
Qual é a situação do Rastreio Auditivo Neonatal em Portugal?
Os primeiros rastreios auditivos neonatais foram realizados nas grandes maternidades das principais cidades, nos anos 80, aos bebés pertencentes a “grupos de risco”. A Maternidade Dr. Alfredo da Costa referenciava os “grandes” prematuros, os bebés de baixo peso à nascença, crianças sindrómicas ou com história familiar de surdez, ao serviço de Otorrinolaringologia do Hospital Dona Estefânia, em Lisboa. No Porto, a Maternidade Júlio Dinis e o Serviço de Otorrinolaringologia do Hospital Pediátrico Maria Pia, iniciaram o rastreio a recém-nascidos de muito baixo peso, em 1996 (Monteiro & Serrano, 2018).
Em 2013 foi realizado um levantamento dos dados nacionais e, embora não sendo obrigatório, a maioria das maternidades públicas e privadas possui programas de rastreio locais, tendo como taxas de cobertura os 90%, sendo realizados por audiologistas, enfermeiros e pediatras. A nível nacional ainda não existe uma gestão central dos dados obtidos por cada maternidade e verificam-se grandes dificuldades na intervenção atempada do processo de habilitação auditiva (Santos, 2013).

Sobre a autora:
Marta Gomes
Lic. em Audiologia pela Escola Superior de Saúde de Coimbra
Mestre em Psicologia pela UAL
Audiologista na Cuf Cascais
Audiologista na Widex de Cascais
Referências Bibliográficas:
Cruz, A.L., Alvarenga, A.S., Soares, E., Caba, E.G., Castro, F., Saraiva, J., Monteiro, L., Cavaco, M.A., Coutinho, M.B., Cruz, N.V. & Freitas, P. (2007). Recomendações para o Rastreio Auditivo Neonatal Universal (RANU). Acta Pediátrica Portuguesa, 38(5).209-14
Downs M.P. & Yoshinaga, C. (1999). The Efficacy of Early Identification and Intervention for Children with Hearing Impairment. Pediatrics Clinics of North America, 46, 79-85.
Griz, S.M., Silva, A.R., Barbosa, C.P., Menezes, D.C., Curado, N.R., Silveira, A.K. & Teixeira, D.A. (2010). Indicadores de Risco para a Perda Auditiva em Neonatos e Lactentes Atendidos em um Programa de Triagem Auditiva Neonatal. Cefac.
Santos, A.R. (2013). Rastreio Auditivo Neonatal Universal em Portugal: Ponto da Situação. Tese de Mestrado. Escola Superior de Tecnologia da Saúde de Coimbra.
Monteiro, L. & Serrano, M. (2018). Rastreios Auditivos em Idade Pediátrica in Audiologia, Som e Audição, das Bases à Clínica. Círculo Médico. Lisboa.

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